A nossa história, deixa que a gente conta

Escrito por
Sérgio Motta

Bem sabemos que em uma história, o herói não é necessariamente a pessoa que perpetua os bons valores éticos e morais. Nem o vilão é aquele que representa o mal. Até porque, esses valores são relativos, e o herói e vilão, protagonista e antagonista, são definidos por quem conta a história.

Até que os leões tenham seus próprios historiadores, a história da caça sempre glorificará o caçador.

O provérbio acima é proveniente do povo igbo, um dos maiores grupos étnicos do continente africano, localizados no sul e sudeste da Nigéria, e foi popularizado no mundo pelo grande escritor Chinua Achebe, considerado o pai da literatura moderna nigeriana, autor de livros como “O mundo se despedaça”, “A flecha de Deus” e “A paz dura pouco”, que retrata valores e nuances culturais e plurais nas vivências da Nigéria.

Assim como Toni Morrison, James Baldwin, Octavia Butler, entre outros grandes escritores negros, Chinua começou a escrever pela necessidade de contar as histórias a quais ele pertencia, no passado, presente ou futuro. Pois, fossem nos livros de histórias ou nas narrativas ficcionais, as raras vezes em que ele via a África, enquanto continente, cultura, povos, rostos pretos ou ancestralidade, estavam sendo retratados por escritores e historiadores brancos.

E, nas versões dos caçadores/colonizadores, a África sempre é a vilã.

A necessidade das histórias múltiplas

Na versão em que Europa é protagonista, África é antagonista, representa o mal, tudo nela está errada, é a perdição. Essas narrativas foram construídas para justificar a escravidão e a inferiorização do povo negro.

Nunca podemos contar nossas histórias — e sequer queremos ouvi-las, pois somos ensinados a não querê-las, a nos afastar delas. Como consequência, somos submetidos ao racismo, à violência, ao auto-ódio, à miséria, aos estereótipos. Perdemos nossos sobrenomes, idiomas, tradições. Assim, é perpetuada a história única, denunciada por mais uma grande escritora nigeriana, Chimamanda Ngozie Adichie.

É por isso que não é mencionado nos meios padrões estabelecidos de educação e cultura, que os kushitas sejam o verdadeiro berço de todas as civilizações, como mostra o antropólogo e arqueólogo Clyde Winters, no livro “The Kushites Who, What, When, Where” (sem tradução), nem vemos obras ao longo da história da literatura que mostram a riqueza cultural africana, como nossa formação, conexão e representatividade, como faz Clyde W. Ford (sim, são pessoas diferentes), em “O herói com rosto africano”.

Se temos dois Clyde W’s nos entregando diferentes narrativas e formas de contar as histórias do povo negro, temos muitas mais quando incluímos todos os Clydes e não-Clydes, W’s ou qualquer outra letra do alfabeto, dispostos a apresentar narrativas sob outras óticas.

No Brasil, ainda que sejamos o segundo maior país negro do mundo — atrás apenas da, mais uma vez citada, Nigéria — e a maior diáspora africana, o cenário é parecido: as histórias dos mais de trezentos anos de escravização, não são escritas por nós. Adicionando, então, nessa equação, mais 130 anos de perpetuação do racismo, do apagamento, da miséria.

Felizmente, não desistimos facilmente. Elza não mudou a letra de “A carne” à toa: “A carne mais barata do mercado foi a carne negra, agora não é mais. Agora, a carne negra luta”.

O resultado desta conta é mais de quatrocentos anos de luta, resiliência e sobrevivência, para que contemos nossas próprias histórias. Dessa forma, mostramos que existimos.

Ainda que falamos e usamos nossas vozes para contar nossas histórias cada vez mais, a luta é árdua e longa: a literatura braileira continua majoritariamente branca e perpetuando os mesmos estereótipos; o mercado editorial é pouco diverso e excludente; os autores negros tem que se provar o tempo todo; os clássicos pretos continuam sendo negligenciados pela academia.

Como Chimamanda propõe em “O perigo de uma história única”, precisamos ativamente procurar pelas diferentes narrativas para, então, entendermos quem são os heróis e vilões.


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