“Dias sem fim”: não se acostume ao cotidiano violento

“Dias sem fim”: não se acostume ao cotidiano violento

Por Sérgio Motta

2 de maio de 2020

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Se você já leu “O ódio que você semeia” (espero que sim) ou conhece a obra de 2Pac (espero que sim também), você deve lembrar o significado do acrônimo “Thug Life”: “The hate u give little infants fucks everybody” ou “o ódio que você passa para as criancinhas fode com todo mundo”. Essa frase sintetiza o livro de Angie Thomas, as músicas de Tupac Shakur, o gueto americano e este filme, “Dias sem fim”.

Um cara me disse: “com a escravidão, os negros aprenderam a sobreviver, não a viver”. E é isso que passamos pra frente.

“Dias sem fim” estreou ontem (1º de maio) na Netflix. Pouco foi falado sobre a estreia desse filme, mas não é por falta de nomes de peso: o filme é escrito e dirigido por Joe Robert Cole (co-roteirista de “Pantera Negra” e “American Crime Story: O Povo Contra O. J. Simpson”) e tem no elenco, Ashton Sanders (“Moonlight”), Jeffrey Wright (“Jogos Vorazes” e “Westworld”) e Yahya Abdul-Mateen II (“The Get Down”, “Nós” e “Watchmen”).

Neste filme, acompanhamos Jahkor, um jovem negro que cresceu em um cotidiano violento e acaba entrando no mundo do crime naturalmente. O garoto tenta sair quando descobre que será pai, mas o racismo e a impotência que ele sente o puxam de volta. Depois de cometer um duplo homicídio em que ele é condenado à prisão perpétua, o garoto começa a repensar sua vida e o que o levou até aquele crime.

O juiz disse que era o fim da minha liberdade. Mas eu não me lembro de um dia ter sido livre.

“Descanse o seu gatilho”

A partir daí, o que vemos é um roteiro não linear, que alterna entre o atual momento, alguns meses antes do crime e a infância de Jahkor. O filme é cíclico, pois a Thug Life é cíclica. É um ciclo de violências, traumas e abusos que levam pessoas negras a matarem umas as outras.

E, se lá temos 2Pac, aqui temos Mano Brown. Em “Fórmula mágica da paz”, de “Sobrevivendo no inferno“, ele diz que nossa realidade é um campo minado que não escapamos facilmente, mas podemos tentar. E termina nos pedindo para que não nos acostumamos ao cotidiano violento, porque esse mundo não foi feito para nós.

A gente vive se matando irmão (por quê?)
Não me olhe assim, eu sou igual a você
Descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho
E que no trem da humildade, o meu rap é o trilho”

Como acabar com estes dias sem fim

Jahkor aprendeu toda a vida que o mais forte é quem sobrevive. Que ele precisa ser dominante e implacável. Essa regra o foi ensinada dia após dia na escola, nas ruas, na sociedade racista, na delegacia e em casa, pelo seu pai. Jahkor o reencontra na cadeia e aos poucos pensa se ele pode ser diferente. Se ele pode não apenas “passar pra frente”.

Nós nascemos na prisão. Mas eu não sou seu prisioneiro.

“Dias sem fim” nos explica o porquê das coisas serem como são e não é uma resposta fácil. Mas, para além do “porquê”, ele nos coloca um “como”. Como podemos fazer diferente, como estes dias podem ter um fim. Assista na Netflix e vamos juntos quebrar este ciclo.

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