Escrita, clichê e originalidade: onde estão as narrativas negras?

Escrito por
Ella Ferreira
Foto. Um par de mãos de pessoas negras. Uma delas coloca uma aliança no dedo da outra.

Quando criança, não tinha a compreensão necessária para elaborar o questionamento “Onde estão as narrativas negras?”, mas sabia que havia algo errado. Lia sobre as bochechas avermelhadas da protagonista num dia de neve, seu cabelo loiro esvoaçante, e não me percebia como parte daquilo. Aquela história não era a minha, nunca seria. E não me refiro a neve ou às bochechas avermelhadas. Essa personagem era quem tinha as amigas mais fiéis, o namorado que todos consideravam o mais bonito e entrava na melhor universidade do país. Ela, a garota branca.

Se por anos crianças negras são ensinadas que são apenas determinadas pessoas que ocupam um lugar de protagonismo, que possuem finais felizes, isso automaticamente é roubado delas. Para além de um núcleo branco protagonizando tantos livros, filmes e séries, é necessário considerar também o contexto daqueles personagens. Ninguém nunca morava na favela como eu. E, quando morava, era sempre a história mais triste que já tinha lido ou assistido na vida.

Quem escreve hoje esse texto é a Karou de vinte e três anos que cresceu sob essas influências assim como tantas outras garotas negras. Todas crescendo de mãos dadas com baixa autoestima, o não sonhar e o não merecer.

Demorou para entender que, de fato, aquela narrativa não me pertencia, mas que ainda assim eu merecia um final tão feliz quanto aquele.

Quando observado num contexto geral, parece bobagem. “É só um livro, o que tem demais?”. Hoje, nesse lugar de escritora, adulta, é nítido que não é só um livro, nunca foi. Se trata da construção de um imaginário coletivo que fere gerações inteiras e seus descendentes, que afeta o cotidiano e a convivência, que torna o espelho um dos maiores inimigos e os olhares dos outros os piores para ter sobre si. Uma criança, mesmo pequena, sabe quando está sob julgamento. Talvez não seja possível decifrar aquele olhar, mas a sensação está lá.

E como se crescer debaixo de todas essas camadas não fosse o suficiente, quando se está grande é que observamos as consequências. “Esse clichê não cabe pra mim”. Por vezes me afastei de determinadas tradições, crenças e comemorações pensando que é porque sou diferente. “Isso tudo é muito brega”. Mas, no final do dia, vendo um casal preto se casando debaixo da benção de Oxum, isso me faz chorar. E nem da religião eu faço parte. É que é lindo demais ver preto vivendo clichê. Romance, aventura, fantasia.

Uma vez, conversando com um amigo escritor, falávamos sobre enredos e ele rapidamente pontuou (e aqui vou parafraseá-lo):

Quem criou esse negócio de clichê foram os brancos. Eles que esgotaram os enredos para eles. Para nós, pessoas negras, as histórias ainda são originais.

E que triste é pensar que desde que o mundo é mundo as pessoas contam histórias e que as nossas ainda são tão pouco disseminadas. Ao mesmo tempo, o quão poético é saber que temos histórias novas, inéditas para viver — e para contar para as gerações seguintes.

Quem sabe assim, possamos construir um novo imaginário coletivo através da literatura. Esse, não vai mais ferir os descendentes, mas sim curar aqueles que se viam como coadjuvantes de suas próprias histórias.

Karou Dias é baiana, nascida em Amargosa, e escreve desde criança. Já publicou os livros Entre Caixas, Onde as Estrelas não Brilham e o conto Looping na antologia 6 desejos de natal. Além de escrever, ensina escrita criativa com o objetivo de profissionalizar cada vez mais escritores independentes. Pós-graduanda em Edição/Gestão Editorial, sonha em auxiliar na democratização da escrita, aproximando essa arte daqueles que compartilham vivências parecidas com as dela.


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