“Garota, mulher, outras”, uma obra única e plural

Escrito por
Sérgio Motta
Foto da capa de Garota, Mulher, Outras

A primeira palavra que vem à cabeça ao terminar de ler o livro “Garota, mulher, outras” é: único. A segunda é plural. Um livro diferente de tudo que estamos acostumados a ler. A autora, Bernardine Evaristo, traz um novo ar para a literatura e uma nova forma de se contar história em um momento em que discutimos se ainda é possível criar e inovar dentro das artes.

Não foi à toa que escolhemos “Garota, mulher, outras” como nossa leitura coletiva para o Leitura Preta de Fevereiro. Ganhar o Man Booker Prize, a principal premiação literária do Reino Unido, é algo para poucos. Obras de pessoas negras, então, tem ainda menos chances — Bernardine Evaristo se tornou a primeira mulher negra a vencer, dividindo o prêmio de 2019 com Margareth Artwood pelo seu último livro “The testaments”, continuação de “O conto da aia”.

O demérito racista, inclusive, é explícito mesmo aos ganhadores. Apesar do marco histórico de Bernardine Evaristo, em reportagem da BBC News sobre o prêmio, no mesmo dia do anúncio, o relatado foi que o prêmio foi “compartilhado entre Margareth Artwood e outra escritora”. Sequer o nome de Bernardine foi mencionado, muito menos o marco histórico que concretizou. Ou seja, em poucas horas após o ocorrido, a maior rede de mídia britânica providenciou o apagamento da autora.

A categoria do Leitura Preta de Fevereiro ser livros premiados de pessoas negras se faz necessária quando nos deparamos com esse tipo de coisa. Como já falamos, pessoas negras não podem ser medianas; precisamos nos provar, nos superar o tempo todo, na literatura e em todo o resto.

“seja uma pessoa com conhecimento, não apenas opiniões”

E Bernardine Evaristo sabe disso. Ela não se contentou com pouco. Contar uma história poderosa não foi o suficiente; ela investiu na forma. “Garota, mulher, outras” é uma prosa, mas escrita em versos livres, sem pontos finais, nem letras maiúsculas. Uma experiência diferente do que se espera e, ainda assim, fluida e bela.

Um manifesto de doze vozes

Imagine doze vozes. Plurais, dissonantes, diferentes tons, timbres, cantando em diferentes ritmos, diferentes pronúncias, sotaques, cada uma na sua melodia, cada uma entrando em um tempo diferente. Uma cacofonia, caos. E, quando você menos espera, se torna um coro perfeitamente harmônico. Como é possível? Não sei. Mas Bernardine Evaristo faz isso em sua prosa, utilizando uma metalinguagem que fecha a obra com chave de ouro.

Agora, em “Garota, mulher, outras”, o cenário é Londres. E não se engane, não estamos falando da típica Londres dos romances, com estética virotiana, da realeza ou uma grande cidade clássica e quase utópica, mas uma Londres contemporânea verdadeira — e essa verdade é sentida como uma porrada para pessoas negras: crise política e econômica, um movimento conservador e nacionalista se expandindo logo após o Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia.

“privilégio é sobre contexto e circunstância”

E nessa sociedade de ânimos aflorados e um olhar notoriamente hostil à pessoas negras e imigrantes, a história é contada por doze personagens negres — onze mulheres e uma pessoa não-binária — imigrantes ou descendentes de imigrantes de países africanos ou caribenhos.

Dentro desse contexto, a autora traz pautas essenciais e urgentes na nossa sociedade, como raça, sexualidade, gênero e identidade, que acometem e fazem parte das vivências de cada personagem.

Em diferentes graus de separação, Amma está conectada a essas doze vozes e todas as histórias se cruzam e se desenvolvem umas nas outras, fornecendo nuances e contrastes, mostrando que essas pessoas são plurais, mas coletivas; únicas, mas poderosas quando unidas.

São garotas, são mulheres, e também são outras.

“não é sobre sentir ou dizer algo
é sobre estar
junto”

Bernardine Evaristo não veio apenas para ser “outra autora”. Veio para marcar a história da literatura.

Compre “Garota, mulher, outras”, de Bernardine Evaristo.


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