Esta é uma pergunta de resposta impossível que gosto de fazer. Vez ou outra me pego no site do Planalto analisando a Lei 3.353/88 para confirmar se não deixei passar uma ou outra palavrinha. Mas não. A lei que tratou de uma das maiores atrocidades do Estado brasileiro possui dois breves e lacônicos artigos:
Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.
Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.
Nem vinte palavras mereceu o assunto aos olhos do Império. E ainda deu a alcunha de “redentora” a Isabel. Há quem diga que a saída de Pedro II fez parte de uma estratégia para abrir caminhos para a filha declarar a abolição e ter sua imagem valorizada para o Terceiro Reinado. E ainda houve toda uma propaganda que construiu a lei como um “presente” de Isabel, a quem ex-escravizados deveriam gratidão eterna.
Como historiadora e professora, meu movimento preferido é o de “escovar a história a contrapelo”, como disse Walter Benjamin. Ou seja, fazer o sentido contrário, procurar detalhes e narrativas não hegemônicas naquilo que se tornou “oficial”.
Quantas figuras negras foram eclipsadas pela história tradicional do 13 de maio? Quantos movimentos de resistência encontramos ao descortinar o contexto da segunda metade do século XIX? Quantas rebeliões de escravizados, quantas fugas, ataques, protestos, formação de quilombos, luta e pressão social há por trás da deslegitimação de uma sociedade escravocrata?
A abolição não foi presente. Foi conquista.
Em sala de aula, minha primeira tarefa é quebrar essa versão romantizada do 13 de maio que foi cuidadosamente construída no imaginário dos meus alunos. Para isso, uma fonte fundamental foi o premiado podcast Projeto Querino, que, com oito episódios, analisa a História do Brasil sob uma perspectiva afrocentrada. O tema da abolição ganha mais foco no episódio 8, e é um material que contribui muito ao debate.
Em seguida, avanço mais. Inspirada por uma prática da profª Keilla Vila Flor, pergunto ao 8º ano que outro 13 de maio poderíamos estar comemorando hoje. Assim mesmo, no pretérito do futuro porque não há como refazer o passado, mas existe algo de muito poderoso em imaginar; é dessa forma que os estudantes podem ver a desigualdade de hoje como um legado histórico e como um produto da marginalização política.
As turmas são divididas em grupos: membros da elite abolicionista; imigrantes europeus; latifundiários; povos indígenas; escravizados; e figuras reais abolicionistas, como Luiz Gama, José do Patrocínio, Maria Firmina dos Reis, Machado de Assis etc. Em uma brincadeira teatral, eu represento o poder monárquico e convido as parcelas sociais a elaborarem uma Lei Áurea em conjunto. Cada grupo poderia sugerir artigos ao texto, mas nada seria aprovado sem maioria.
O resultado me deixou boquiaberta, devo confessar. Com seus treze e catorze anos, as turmas criaram dezoito artigos que falavam sobre acesso à terra, educação, liberdade religiosa, enfrentamento às desigualdades raciais e vários outros tópicos que partiram de suas próprias discussões e compreensão das falhas do Estado brasileiro (leia na íntegra). Foi uma bagunça criativa e reflexiva que mostrou na prática a importância da representação política (veja um corte da aula).
O caminho para uma educação antirracista de fato não é só quebrar a lógica da lei como “dádiva”, mas criticá-la como insuficiente. E não somos apenas nós, de 2024, que pensamos assim. Mesmo em 1888, grandes abolicionistas apresentaram projetos de abolição que demandavam reparação histórica, mas foram ignorados diante do cabo de guerra que tinha o peso da elite latifundiária do outro lado. E para você, o que poderia ter sido o 13 de maio? Que artigos seriam necessários para que hoje a desigualdade racial não fosse uma realidade?
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SCHWARCZ, Lilia M.; STARLING, Heloísa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
PROJETO QUERINO: Democracia [Locução de]: Tiago Rogero. 6 ago. 2022. Podcast.
Lavínia Rocha é escritora, palestrante, criadora de conteúdo, professora de História licenciada pela UFMG e pós-graduada em Ensino de História. Vencedora do prêmio Perestroika para professores criativos e finalista do Prêmio Professor Porvir, destaca-se nas redes sociais divulgando uma metodologia dinâmica e divertida. Começou a escrever aos onze anos e é autora de O mistério da Sala Secreta e da trilogia Entre 3 mundos, além de fazer parte de coletâneas. Lia Rocha é o pseudônimo da autora para livros com temáticas do universo adulto.
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