Vamos promover a diversidade no mercado editorial?

Escrito por
Sérgio Motta
Ilustração do mapa do Brasil com rostos diversos de várias etnias, tipos de cabelo etc.

O mercado editorial vem percebendo uma obviedade: diversidade vende. Mas promover a diversidade para inglês ver não funciona, pois para o inglês, a diversidade não importa; apenas as vendas.

Não usei a expressão “para inglês ver” à toa. Ela tem uma origem histórica que impactou em vidas negras, e que tem muito em comum com a atual “diversidade” promovida no mercado editorial. Proponho nos próximos parágrafos uma viagem no tempo para contextualizar essa expressão.

No início do século XIX, a Inglaterra adotou uma política antiescravista e tentou impor o fim do tráfico negreiro e a abolição da escravidão nos países europeus e colônias. Mas de boazinha e antirracista, a terra da rainha não tinha nada.

A Inglaterra foi a segunda nação mais ativa do tráfico negreiro, sequestrando mais de três milhões de pessoas do continente africano, separando-os de suas famílias, culturas, crenças, idiomas, nomes, para escravizá-las nas Américas, entre os séculos XVI e XIX.

O primeiro lugar vai para Portugal (eu não estou surpreso; você está?).

Gráfico que mostra os países que mais fizeram tráfico negreiro durante a escravidão

Mas é no começo do século XIX que surge o ponto de virada da nossa história. Quando a Inglaterra entrou em jogo, já existiam sinais de movimentos abolicionistas acontecendo. Sobretudo após uma sequência de eventos em que a liberdade civil era o grande ideal buscado: a Revolução Francesa, a Guerra da Independência dos EUA e a Revolução Haitiana. Este último, comumente menos citada, mas o mais relevante do ponto de vista abolicionista, pois tornou-se a primeira república governada por negros de África diáspora. Além disso, o Chile já havia abolido a escravidão quase um século antes.

Todos esses movimentos e ideais motivaram a Coroa britânica a promover a abolição no mundo ocidental e acabar de vez com o comércio de pessoas escravizadas no Atlântico e o holocausto africano? Não. Foi o dinheiro mesmo.

A Revolução que acontecia na Inglaterra na mesma época que as demais citadas anteriormente era a Industrial. O modelo de negócio em que se pagava mão-de-obra barata para pessoas negras de África ou diáspora, em consumidores potenciais, e, ainda, transformava-os em consumidores potenciais parecia mais lucrativa do que a escravidão dessa mesma população que os mantém como um produto não-produzível e sem poder aquisitivo algum.

O Brasil estava na mira dos ingleses nessa campanha. A Coroa portuguesa entrou na dança por motivos diplomáticos — afinal, a Inglaterra era a maior potência da época —, e prometeu que acabaria com o tráfico negreiro também.

E aqui a grande ironia: da mesma forma que os britânicos queriam acabar com a escravidão apenas por interesse econômico, os portugueses queriam manter a escravidão e as boas relações com a Inglaterra por interesse econômico. Então, para inglês ver, o império brasileiro colocou navios militares na costa para impedir o tráfico transatlântico e instaurou a Lei Feijó, que proibia o comércio de africanos e pena para os traficantes, mas nenhuma das duas coisas se cumpria na prática (o que deu algumas décadas para Portugal disparar na liderança e vender como mercadoria quase 4 milhões de africanos).

“Diversidade” entre muitas aspas

Segundo as sabedorias africanas, o tempo é cíclico e não linear. E voltamos agora a 2020, para falar da aposta na “diversidade” do mercado editorial, que visa mudar a imagem da marca e ampliar o público consumidor, pensando no lucro — tal qual a Inglaterra —, mas faz sem realmente criar um mercado diverso, apenas “para inglês ver” — à brasileira.

A literatura é majoritariamente branca e isso já não é novidade. A pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”, da professora da UnB, Regina Dalcastagnè, já mostrou que o perfil do autor brasileiro é o mesmo pelo menos desde 1965.

Gráfico que mostra a cor dos autores da literatura das principais editoras do país, predominantemente brancos.

Antes disso, com a população negra e indígena com menos direitos, taxa de alfabetização, escolaridade e poder aquisitivo ainda menores — e ainda antes, sob um regime escravagista para inglês ver ou não — é provável que o número de autores não-brancos tendesse a zero.

Nos últimos anos, o mercado está se britanizando e percebendo que, ao publicar histórias “diversas”, pode atingir novos públicos e trazer novos ares para quem já está cansado de ler sempre as mesmas histórias. O que, mesmo que por vias tortas, é um movimento positivo (assim como foi a abolição).

Torna-se negativo, porém, quando é feito como a Lei Feijó: em boa parte desses livros vendidos como “diversos”, as pessoas envolvidas na produção deles não são diversas.

É quando nos deparamos com termos racismos; com personagens que perpetuam estereótipos que violentam as pessoas negras; com flexões de sotaques, que não são sotaques, mas caricaturas que ridicularizam e inferiorizam a população negra; com desconsiderações e apagamentos de nossas vivências; com capas que modificam características físicas dos personagens ou os escondem, aproximando-os da branquitude; com campanhas de marketing e estratégias de comunicações que trazem mais problemas ainda.

Problemas estes, frequentes e que acontecem não só com livros com representações e negras. O mercado, formado sempre pelas mesmas pessoas, perpetuam o racismo, a LGBTfobia, o capacitismo, a xenofobia, o machismo, o preconceito social, a gordofobia, a intolerância religiosa. Tudo que é diverso e fora da festa VIP do mercado editorial onde todos com nome na lista preenchem os mesmos requisitos. E ainda há o agravante pouco discutido da interseccionalidade dessas vivências plurais que são violentadas.

Então, no final do dia, as vendas dos livros “diversos” não saiam como esperado, não dê lucro, gere despesas, sujem mais do que reforçam a imagem da marca. Os leitores cobram a falta do departamento empresarial mais citado na internet: o de “vai dar merda”. E a máxima dos idos de 2014, que envelheceu mal, é ecoada: quem lacra não lucra.

No dia seguinte, voltam-se às publicações de brancos por brancos para brancos, pois embora já não dê tão certo, também não dá tão errado. Tudo continua como sempre foi imposto: branco, normativo, padrão.

Não estamos mais em 2014, e já sabemos que “quem lacra, não lucra” só é verdade quando a intenção é unicamente lucrar. Assim, do outro lado dessa moeda, temos a máxima que não ficou datada e que, repito, é uma grande obviedade: diversidade vende.

Diversidade livre das aspas

Do mesmo modo, diversidade só vende se for motivada não apenas pela intenção de vendas, mas pelo objetivo em ser diverso.

É um fato que precisamos cada vez mais ter livros com rostos negros estampados na capa, que precisamos trazer e propagar mais livros de autores negros do mundo inteiro e abrir espaço para os nossos. Promovemos o Leitura Preta e o #BingoLitNegra por isso. Estamos, afinal, no segundo país em população negra no mundo; o maior fora do continente africano. Representação é importante, mas a representação pela representação, é para inglês ver. Mais que representação, precisamos de representatividade.

Editoras, empresas, profissionais do livro e autores independentes vem percebendo isso — boa parte deles, pela dor (no bolso) — e tomando algumas atitudes, como a contratação de serviços de pessoas que vivências mais próximas das retratadas no livro em algumas etapas do processo editorial, e outros tipos de consultorias com pessoas de fora da festa VIP para conter os riscos.

Assim, a Lei Feijó vem, aos poucos, sendo cumprida. Mas os navios continuam na costa, apenas para inglês ver.

Jogar a responsabilidade nos ombros de uma ou duas pessoas já tão violentadas e vulnerabilizadas no mercado, não resolve o problema. Só as pressionam e fazem com que, no menor dos erros, as pedras sejam atiradas contra elas; afinal, elas estão lá para evitar todos os problemas.

Uma Revolução Haitiana não se faz com uma lei de dois parágrafos ou pensando em ampliar o capital, mas com uma mudança estrutural.

Ao fim da Revolução, com o intento de ressignificar e incluir a palavra negro enquanto sinônimo de ser humano, a Constituição Haitiana declara que todos os cidadãos haitianos são negros.

Dizendo uma obviedade ainda maior, mas que parece não estar clara: para o mercado editorial se tornar diverso, ele precisa ser diverso.

O uso das aspas nas palavras “diversidade” e “diverso” são propositais. Mais do que profissionais de “diversidade”, precisamos que os profissionais de todos os setores sejam diversos, dentro e fora das editoras, nos processos editoriais, comerciais, de comunicação, próximos dos autores, entre os autores, nas livrarias, nos eventos, na educação.

Não haverá racismo contra negros no mercado editorial, se as pessoas negras representarem o mercado editorial. Não haverá capacitismo, se as pessoas com deficiência representarem o mercado editorial. Se o mercado editorial se formar por pessoas plurais, ele será plural. E tem espaço para todos — afinal, o caixa tende a crescer com os milhões de clientes em potencial não abrangidos pelos mercado livreiro.

Dando um primeiro passo por aqui, criamos este formulário inicialmente focado em profissionais do livro (tradução, revisão, edição, preparação, leitura crítica, capa, ilustração, diagramação) negres.

Em breve, publicaremos uma página para disponibilizar o contato desses profissionais e pretendemos enviar para editoras e autores independentes. Essa página também poderá ser publicada e compartilhada por todos para que possam ajudar a diversificar o mercado.

Autor da ilustração de capa: Edson Ikê.


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