Eminência parda: nascido da violência

Os índices que unificam pretos e pardos como negros: nascidos da violência, criados com o ódio, vivos pela resistência.

Escrito por
Sérgio Motta
Foto editada de Trevor Noah, um homem negro de quarenta anos olhando fixamente para frente. A imagem mostra uma versão mais escura e mais clara da pele de Trevor.

“Os médicos a levaram para a sala de parto, cortaram a barriga dela e tiraram um bebê meio branco, meio negro, uma criança que, por si só, era a violação de várias leis, estatutos e regulamentações — eu nasci do crime.”
— Nascido do crime: Histórias da minha infância na África do Sul

Esta não é uma resenha do livro de Trevor Noah.

Deixo isso claro, pois ao começar este texto, a ideia era que fosse. Mas, para ser sincero, no momento em que publico, sequer terminei o livro. E também porque acho importante dizer que discordo do título do livro: Trevor Noah não nasceu do crime. Nasceu da violência.

Capa do livro "Nascido do crime", com a ilustração de um homem negro jovem de pele clara sorrindo, com a mão na cabeça e sua mãe, uma mulher negra de costas e turbante na cabeça observando a ilustração.

Um das motivações de termos criado o Afroliterária é identificação. É grave como conseguimos nos conectar mais ao ler sobre a história de um autor de uma geração anterior contando sobre sua infância na África do Sul do Apartheid do que muitas das obras alçadas a símbolos culturais brasileiras contemporâneas. E é ainda mais grave a razão disso.

Chamamos o Afroliterária de um projeto de Resistência não por demagogia ou floreio. Resistência é re-existência, voltar a existir ou reafirmar sua existência. O Apartheid institucional gera ódio institucional. Para re-existir, é necessário uma reconhecer a violência institucional. Trevor nasceu da violência. Cresceu com ódio. Vive pela Resistência. E isso diz mais sobre o Brasil, com seu apartheid não-institucional porém institucional, que gera ódio não-institucional porém institucional, e a necessidade de reconhecer a violência não-institucional porém muito bem institucional.

“A genialidade do Apartheid foi convencer a grande maioria da população de que as pessoas eram inimigas umas das outras. ‘Separados pelo ódio’ era a ideia por trás desse regime. Basta segregar as pessoas em grupos e fazê-las se odiar para tornar possível o controle de todos.”
— Nascido do crime: Histórias da minha infância na África do Sul

Comecei a ler Nascido do crime na expectativa de mergulhar na compreensão do que foi o Apartheid, a história sul-africana da segunda metade do século XX e me vi, ainda nos primeiros capítulos, mergulhando na compreensão do que foi e do que é o Brasil.

Nas ruas da sul

Foi impossível não pensar em como um menino mestiço chamado Trevor, de mãe preta sul-africana — xhosa mais especificamente — e pai branco suíço, nascido nos anos 80 em Joanesburgo, tinha tanto em comum, com outro menino mestiço nascido, nos anos 70 na periferia da Zona Sul de São Paulo, de mãe preta baiana e pai branco que não conheceu, mas sabe-se de origem italiana, chamado Pedro Paulo — nas ruas da sul, conhecido como Mano Brown.

E mais ainda, como ambos tinham tanto a falar comigo e sobre mim, um menino mestiço dos anos 90, filho de pai preto baiano e mãe branca paulista, que também vem das ruas da Sul de São Paulo, a um atlântico de distância de Soweto — as ruas da Sul de Joanesburgo, onde a população negra era isolada —, e que se entende por gente já com Racionais no ar e Mandela, como homem livre, já fazia o impossível.

Nasci em 1993, nas ruas da Sul de São Paulo. No final desse mesmo ano, Mano Brown aos 23 cantava Raio-X do Brasil. Quando eu tinha quatro, Racionais MC’s lança Sobrevivendo no Inferno. Mas as letras que começam a falar comigo são as de Nada como um dia após o outro dia. Mano Brown aos 32 e eu, aos nove. Existe, claro, uma relação de formação da minha infância que não me permitiria compreender aos quatro anos. Mas por que o homem de 32 falaria com um menino de nove? Bom, nesse álbum, mais que nos outros, Mano Brown não está falando do Brasil afora, mas do Brasil adentro. Brown rima sobre si mesmo. E sobre mim.

Brown é nostálgico, é aberto, é frágil neste álbum. Começa pedindo benção à sua mãe antes das primeiras rimas. Então, fala sobre sua infância, suas lutas, suas ingenuidades, suas dores, seus medos, suas incoerências, seu amadurecimento, sobre os conselhos e exemplos da mãe, Dona Ana. Neste álbum, Mano Brown humaniza o homem negro.

Mas também mostra que o homem negro é nascido do crime, no crime, para o crime, como crime. É o crime.

Trevor Noah faz o mesmo em seu livro. A abordagem é outra, o tom é outro, o cenário é outro. Mas é sua mãe e ele, uma negra e uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço; mãe solteira de um promissor vagabundo, com um filho pardo sem pai. Ele é humano, falho, mas vivo. E sua mãe também.

Há diferenças entre essas histórias, claro. Brown não conheceu seu pai; Trevor conhecera, embora vivesse como se não tivesse. Ambos sem o pai no documento, sem o pai no parto. Brown filho único, Trevor tinha irmãos — não nascidos do crime previsto na Lei da Imoralidade, mas também do crime, no crime, para o crime, como crime, pois são filhos de sua mãe —, mas ser “mais um filho pardo” — ou coloured — fazia-o único.

“Eu durmo pronto pra guerra e eu não era assim
Eu tenho ódio e sei que é mal pra mim”
— Vida Loka Pt. 2

Histórias diferentes que, no final das contas, nascem da violência, criam-se com ódio, vivem pela resistência. E eu os reconheço nesse momento.

Há diferenças com a minha história também. Pai preto, não a mãe. Mais claro que Brown e Trevor. Com o pai preto que trabalhava doze horas por dia de domingo a domingo e a mãe branca mais próxima no dia a dia, foi me escondido que nasci do crime, não fui criado com ódio, não vivi pela resistência. O projeto era outro: a passabilidade. Não apenas racial, mas do problema, do crime. Não podia ouvir Racionais. Não podia viver as ruas da Sul. Isso me levou a não poder tomar sol para não ficar mais escuro, a não poder deixar meu cabelo cachear para não ficar volumoso, a não entender o crime, o ódio ou a resistência, a não me entender.

Nasci da violência. Mas era outra.

Foto do quadro Redenção de Cam, com uma mulher negra agradecendo aos céus que sua filha negra de pele clara teve uma filha branca, junto ao seu marido branco.

“Eu cresci na África do Sul durante o apartheid, o que era muito confuso, pois fui criado em uma família miscigenada, com apenas um mestiço: eu.”
— Nascido do crime: Histórias da minha infância na África do Sul

Muriquinho Pequenino

O que mais me chama atenção no livro de Trevor é o quanto, em memórias, sua versão infantil se mostra confusa sobre si mesma. Por que ainda moravam na África do Sul se lá ele não era bem-vindo? Por que sua mãe o quis se ele era um crime? Por que os negros, em geral, eram confusos e conflitavam entre si — mesmo após o fim do apartheid? Brown traz as questões de sua infância também: por que nos matamos? Por que não temos paz? O que de fato mudou? Por que a tranquilidade é negada? Os dois se perguntam quem são.

Trago aqui Brown e Trevor juntos nesse texto, porque acreditava que Brown fazia com que me encontrasse com meu eu infantil pelo sotaque, pelas gírias, pelas ruas da sul, mas não. Trevor me mostrou que encontro com minha versão infantil, pois, de forma diferente, sendo privada de compreender e aceitar a própria identidade, era também confusa e levantava as mesmas questões sobre não-aceitação, sobre não-lugar, sobre não-perspectiva, como um vira-lata sem fé no futuro. Como um crime. O processo de tentar responder essas perguntas e continuar procurando-as, chamamos de resistência.

“Em qualquer sociedade forjada no racismo institucionalizado, a mistura de raças, além de expor a injustiça por trás do sistema, revela que ele é insustentável e incoerente. A miscigenação é prova de que as raças podem se misturar — e, em muitos casos, é isso mesmo que elas querem. Como o mestiço é a personificação da incoerência do sistema, a miscigenação passa a ser um crime pior que traição.
— Nascido do crime: Histórias da minha infância na África do Sul

Crime aqui nada mais é do que um sinônimo de racismo. Mas, ao chamar racismo de crime, confundimos com a lei escrita e institucionalizada. Apartheid era a lei escrita e institucionalizada. A escravidão também. O mestiço era crime na África do Sul. Lutar por liberdade era crime no Brasil.

O racismo não é apenas crime. É violência. Entre todos os índices que justifiquem o agrupamento de pretos e pardos como negros, os que não se podem questionar são: nascidos da violência, criados com ódio, vivos pela resistência.

(…) ser negro não é uma questão epidérmica. A cor da pele, em todos os seus variados matizes, funciona como distintivo da nossa origem africana. Mulato, cafuso, negro, escurinho, moreno: todos os eufemismos convergem para esta identidade, que as elites dominantes no Brasil sempre quiseram renegar. Quando somos barrados do emprego ou encaminhados para o elevador de serviço, não apenas a cor da pele provoca a discriminação, mas, sobretudo, a identidade africana anunciada pela cor.
— “Em defesa do negro”. Jornal O Dia. Abdias Nascimento

O ódio pode ser incitado entre os negros. A resistência advém em razão da negritude. Já a eminência parda por trás da violência nunca é preta… nem parda.


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