“Sobrevivendo no inferno”, a obra-prima dos quatro pretos mais perigosos do Brasil

Escrito por
Sérgio Motta
Capa do livro Racionais MC's: Sobrevivendo no inferno

“Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição”

Foi em 20 de dezembro 1997 que a fúria negra ressuscitou outra vez. Não apenas ressuscitou, como foi direcionada. Foi neste ano que a tristeza e o ódio gerados pela miséria, a identidade negra e o rap nacional transcenderam a quebrada e ganharam os holofotes do país. Tudo isso com o lançamento de “Sobrevivendo no inferno”, dos Racionais MC’s.

Também conhecido como “A Bíblia do Rap”, o álbum virou livro ao completar 20 anos. Além das letras, que, com ou sem acompanhamento musical, são poesias profundas sobre a vivência marginal dos negros no Brasil, o livro também tem o ensaio fotográfico do disco e um acabamento fantástico dourado nas páginas. Uma edição à altura da obra. Além de uma análise delicada do álbum do professor de literatura brasileira na Universidade de Pernambuco, Acauam Silvério de Oliveira.

O grupo formado por Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay transcendem o rap, e a música. E até a literatura. Segundo a filósofa Djamila Ribeiro, autora de O que é lugar de fala?, Racionais MC’s deveriam ser estudados frequentemente na academia, seja pelo viés artístico ou sócio-científico, pois a obra do grupo mostra a realidade negra nas periferias, pouco conhecida e explorada nos meios acadêmicos — majoritariamente branco, não somente entre aqueles que estudam, mas também os objetos de estudo.

E, bom, se me pedissem para escolher um objeto de estudo inicial para se trabalhar na academia, mostrando o verdadeiro Brasil, o nosso Brasil, eu diria “Sobrevivendo no inferno”, a obra-prima do grupo dos Racionais MC’s.

E não sou só eu que acho. A Unicamp já deu esse passo incluindo o álbum como leitura obrigatória no vestibular. O grupo se pronunciou sobre a notícia dizendo que era “a periferia ocupando a academia”. E, claro, o professor Acauam Silvério de Oliveira, que estudou veementemente a obra, aponta em seu artigo “O evangelho marginal dos Racionais MC’s”, presente no livro, porque Sobrevivendo no inferno merece ser estudado por sua linguagem, comunicação social, estrutura, arte… Um novo olhar para “Sobrevivendo no inferno” vinte anos depois.

A palavra negra de Racionais MC’s

Livro "Sobrevivendo no Inferno" aberto no início da seção com letras do álbum.

O que mais me chamou atenção é quando Acauam diz que “Sobrevivendo no Inferno” é um culto. Um culto de negros para negros sobre negros. A capa, a contracapa, as fotos, as letras, a estrutura, tudo é parte de um grande culto. O professor destrincha o álbum da seguinte forma:

Falando das músicas em si, o culto começa com um cântico de louvor direcionado à São Jorge, o santo guerreiro, em “Jorge da Capadócia” cantado por Jorge Ben. Em seguida, Mano Brown lê o evangelho marginal em “Gênesis”.

“Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor.
O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta.
Eu? Eu tenho uma bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta.
Eu tô tentando sobreviver no inferno”
(Gênesis, Racionais MC’s)

Ouvimos a pregação, guiando a fé (e a fúria) dando uma nova interpretação da palavra divina em “Capítulo 4, Versículo 3”. Em seguida, acompanhamos dois testemunhos das almas tentadas pelo diabo em “Tô ouvindo alguém me chamar” e “Rapaz comum”, que mostra que o desvio do caminho pregado não valeu à pena. Envolveram-se com o crime na esperança de sair da miséria imposta desde sempre ao povo negro, mas morreram arrependidos.

Então, “…”. Dois minutos e meio de silêncio para velarmos essas mortes e orarmos por elas. Depois, temos a principal mensagem do culto: o Dia do Juízo Final.

Dia 2 de outubro de 1992. O dia do Massacre do Carandiru.

Quando o julgamento não foi feito por Deus, mas pelo Estado e a danação eterna não foi executada pelo Diabo, mas pela Polícia Militar. Trata-se de uma das maiores músicas brasileiras já compostas: “Diário de um detento”.

“Era a brecha que o sistema queria
Avise o IML, chegou o grande dia
Depende do sim ou não de um só homem
Que prefere ser neutro pelo telefone
Ratatatá, caviar e champanhe
Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe
Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo
Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio
O ser humano é descartável no Brasil
Como Modess usado ou bombril
Cadeia? Claro que o sistema não quis
Esconde o que a novela não diz
Ratatatá! Sangue jorra como água.
Do ouvido, da boca e nariz
O Senhor é meu pastor
Perdoe o que seu filho fez
Morreu de bruços no salmo 23
Sem padre, sem repórter
Sem arma, sem socorro
Vai pegar HIV na boca do cachorro
Cadáveres no poço, no pátio interno
Adolf Hitler sorri no inferno!”

(Diário de um detento, Racionais MC’s )

Em “Periferia é periferia” o evangelho mostra como o diabo age de dentro, enquanto “Qual mentira vou acreditar” conta como age fora e expande o seu domínio sobre a comunidade negra.

Caminha-se para o fim do culto em um momento de autorreflexão. Em “Mágico de Oz” e “Fórmula mágica da paz” é  o momento de entender para quem a palavra do evangelho marginal é, o que se pode aprender com ela e aonde podemos chegar.

“Às vezes eu fico pensando
Se Deus existe mesmo, morô?
Porque meu povo já sofreu demais
E continua sofrendo até hoje
Só que ai eu vejo os moleque nos farol, nas rua
Muito louco de cola, de pedra
E eu penso que poderia ser um filho meu, morô?
Mas aí, eu tenho fé
Eu tenho fé… em Deus”
(Mágico de OZ, Racionais MC’s )

Por fim, “Salve”. Um agradecimento A todos os presentes e abençoados, que sobreviveram no inferno, que tiveram fé, que se redimiram, que se sentem representados.

Livro "Sobrevivendo no Inferno" aberto nos agradecimentos.

“Sobrevivendo no inferno” é sobre ter voz.

A comunidade negra ter voz é a maior arma contra à supremacia branca. O próprio Mano Brown diz que não é um artista. “Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista”, ele diz. A comunidade negra ter voz, mostra que ela sobreviveu ao inferno.

Este álbum é um marco para a comunidade negra, em que antes o ódio na periferia pela miséria, tristeza e dor ficava na periferia, só se via o interior, nos matávamos. Sobrevivendo no inferno” veio como um guia necessário para perceber que o problema transcendia a quebrada. Para perceber que, embora sejam os negros que morram, a doença não está em nós. No momento em que esse álbum foi lançado, o país conheceu os quatro pretos mais perigosos do Brasil, como Acauam aponta em seu texto. E nada mais justo que vire este livro incrível para que a mensagem dos Racionais continue sendo perpetuada.

“Cada lugar uma lei, eu tô ligado
Mas no extremo sul da zona sul tá tudo errado
Aqui vale muito pouco a sua vida
A nossa lei é falha, violenta e suicida
Se diz que, me diz que, não se revela
Parágrafo primeiro na lei da favela
Legal
Assustador é quando se descobre
Que tudo dá em nada
E que só morre o pobre
A gente vive se matando irmão!
(Por quê?)
Não me olhe assim, eu sou igual a você
Descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho
Entre no trem da humildade, o meu rap é o trilho”

(Fórmula mágica da paz, Racionais MC’s)

Ficha técnica

Título: Sobrevivendo no inferno
Autor: Racionais MC’s
Editora: Companhia das Letras
Número de páginas: 160
Compre: Amazon

Ouça “Sobrevivendo no inferno” no Spotify:


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