“Sociedades repressivas sempre parecem entender os perigos de ideias ‘erradas’.”
Uma frase que mostra porque “Kindred — Laços de sangue”, da Grande dama da Ficção Científica, Octavia E. Butler, é e permanecerá atual em qualquer época.
Falando em épocas, a história se passa em 1976 e gira em torno de Dana, uma mulher negra de 26 anos que acabou de se mudar com o marido para um novo apartamento em Los Angeles. Mas, de repente, ela se vê numa fazenda escravista do século XIX, do outro lado dos EUA. A viagem pelo tempo-espaço se repete ao longo do livro, cada vez colocando mais a vida dela em perigo.
A leitura de Kindred me trouxe duas gratas surpresas além da ótima — e já esperada — história: a primeira é que, embora seja um livro relativamente grande, a leitura é fluida e fácil. A escrita de Octavia E. Butler não tem longas e didáticas descrições e foca nos acontecimentos, nos sentimentos. Como leitor, você imerge naquele mundo passado e teme junto com Dana o que acontece e pode acontecer. A segunda é que seja você fã de ficção científica ou não, Kindred é uma leitura que transcende o gênero.
A história é movida pelas idas e vindas de Dana no tempo-espaço, mas a história pouco se aprofunda neste elemento. É apenas um mecanismo para a história acontecer, para apresentar os conflitos de épocas, para mostrar como uma civilização escravista é cruel e perigosa para uma pessoa apenas por ser negra, mesmo que não pertença àquele lugar. O livro é um drama social, uma ficção científica, sim, de ciências humanas.
“A facilidade. Nós, as crianças … Eu nunca percebi a facilidade com que as pessoas poderiam ser treinadas para aceitar a escravidão.”
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Uma das decisões mais corajosas da autora foi colocar no livro reflexões como a citação acima. Conforme Dana passava mais tempo no passado, mais percebia como a escravidão poderia ser normalizada e facilmente aceita, assim como qualquer tipo de desumanização e crueldade para com o outro. Embora a escrita de Octavia E. Butler seja fácil de ler e não apele para o visceral gratuito, suas reflexões poderosas e nada datadas, faz com que o leitor pare diversas vezes para fazer uma viagem para seu próprio presente e reflita sobre como normalizamos pessoas passando fome, dormindo nas ruas, sofrendo assédios, violência policial e daí por diante.
“… eu percebi que eu sabia menos sobre solidão do que imaginava — e muito menos que eu poderia saber quando ele se foi.”
Destaca-se também algo pouco esperado quando lemos um livro já antigo — e muitas vezes, até contemporâneos: a construção de Dana, enquanto mulher e negra.
Dana não é uma mulher frágil dependente, mas também não é uma guerreira invencível. Dana é uma personagem completa, humana. Tem qualidades e defeitos, fraquezas e fortalezas. Dana tem conflitos e sobrecargas emocionais, mas também calcula suas ações para sobreviver. Dana é embativa pelo seu direito à sobrevivência, mas também cansa e às vezes só queria não ter medo, parar de sentir dor.
E o fato de ser uma personagem com valores e visões de mundo de uma mulher negra, faz dela uma personagem extremamente interessante e rara na literatura de qualquer época — da América escravista do século XIX aos movimentos sociais dos anos 70 e até mesmo ao mercado literário contemporâneo.
Kindred foi minha primeira leitura de Octavia E. Butler. E logo percebi que ela não é uma autora altamente premiada e reconhecida mundialmente à toa. Kindred é uma leitura poderosa, rica de significados, valores e reflexões, que transcende gêneros e transcende épocas.
“Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco”, Octávia E. Butler
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Ficha técnica
Título: Kindred: Laços de Sangue
Autor: Octavia Butler
Editora: Morro Branco
Número de páginas: 432
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