Li e digo: A Escrava e a Fera é uma mancha na Literatura Nacional!

Escrito por
Lorrane Fortunato

Nos últimos dias vem sendo muito falado nas redes a respeito do lançamento do livro A Escrava e a Fera. Nessa história vemos o relacionamento de uma mulher escravizada com o seu senhor. O livro foi acusado com razão de ser racista e de romantizar escravidão.

A Escrava e a Fera está em pré-venda, mas a autora disponibilizou o livro pra quem quisesse resenhá-lo. Além de estar no meu lugar de fala, li o livro e posso falar com propriedade sobre o conteúdo. Esse livro tem tantos problemas que é difícil saber por onde começar.

Sinopse:
“A dor pode transformar, mas o amor é capaz de curar…
Brasil 1824.
Amali foi arrancada do seio de sua família na África, transportada em condições desumanas em um tumbeiro, que atravessou o atlântico, e vendida como escrava. Os pesadelos só parecem piorar quando não é capaz de compreender nem os outros que vieram na pavorosa viagem com ela. Presa como um animal, vendida em um mercado negreiro e marcada a ferro vai passar por sofrimentos que jamais imaginou quando vivia em sua terra natal.

Ela se tornará escrava domestica de um recluso e frio barão, produtor de açúcar do interior de Minas Gerais, que possui mais marcas do que aquelas que tenta esconder. Sua curiosidade, fará Amali questionar sobre a ala queimada do casarão e trará à tona lembranças que ele tenta esquecer a todo custo.
Em meio a dor, o amor florescerá de uma maneira inesperada para curar a cicatrizes de ambos.”

“Existem feridas que nunca cicatrizam.”

Não é preciso ler mais do que a resenha ou mesmo o título da obra para ver o quão racista a história é. Respondendo às críticas a autora disse que irá mudar o título e a sinopse, o que sejamos sinceros, não adianta muita coisa. A não publicação e um pedido de desculpas seriam atitudes melhores.

No seu texto de explicação a escritora diz que fez diversas pesquisas antes de escrever o livro. O que é redundante vindo de uma pessoa que mesmo se explicando usa termos racistas como “denegrir” e “mulato”.

Ainda no texto ela afirma que o personagem tem ideias abolicionistas, o que é uma grande mentira. Pois o personagem não só usufrui dos privilégios de ter pessoas escravizadas como concorda com a escravidão. Em muitos momentos o vemos usando termos racistas para se referir a protagonista, além de estar disposto a ‘colocá-la em seu lugar’, para conseguir isso, recorre a castigos. Castigos leves afinal, ele não pode sair do estereótipo de branco bonzinho.

“Quem essa negrinha pensa que é?”
(Barão Fernando)

Para reforçar o quanto seu protagonista é bom, a autora afirma que ele impede que um personagem seja castigado no tronco. O que não é verdade, o personagem é sim castigado e o barão só impede que o castigo continue, não que ele aconteça. E não por não concordar com prática e sim, por que a protagonista estava sofrendo ao assistir esse ato. Ele não pode ganhar status de cruel justo com a mulher com que está se envolvendo, certo?

“Não era tola de testar a ira do senhor, ele costumava ser bem enérgico durante as punições.”
(Mulher escravizada sobre o barão Fernando.)

Se defendendo sobre a acusação de romantizar estupro a autora falou que não há relação sexual entre os protagonistas e que há sim uma tentativa de estupro, mas o barão acaba impedindo que aconteça e mandando o empregado embora. É extremamente chocante a forma leviana com a qual Jessica Macedo trata algo tão marcante como um quase estupro.

A personagem fica sem sequelas mentais e isso é abordado apenas para reforçar o estereótipo de branco salvador e aproximar ainda mais os protagonistas. A única coisa que vou dizer sobre isso é: estupro não é só penetração.

A crítica que a autora mais recebeu foi sobre esse relacionamento surreal entre uma escrava e o seu senhor. Segundo ela, o envolvimento romântico entre os dois só ocorre após Amali estar livre. Porém no livro vemos que eles estão se envolvendo e se apaixonando muito antes dela sonhar em receber sua carta de alforria. Por isso, essa afirmação é falsa. E não importa se a protagonista casou e teve relações sexuais com o homem depois de ter sido liberta. É uma relação de poder.

Ninguém em sã consciência aceitaria uma história onde, por exemplo, uma judia se relacionaria com um nazista alemão. Mesmo que ele a salvasse da morte e deixasse de ser nazista, seria aceitável? É surreal de se imaginar, certo? Então por que com escravo e senhor é aceitável? Não minimizem a dor do povo negro, não aceitem que diminuam o nosso sofrimento e o dos nossos antepassados assim.

“— Tem algum dos escravos pelo qual tem algum apreço?
— Não, não tenho. – Ao menos não um escravo.”
(Amali sobre Fernando)

É impressionante como a autora trata a alforria dos escravos como algo facílimo de ser feito e como a solução de todos os problemas. No geral, Jessica Macedo minimiza muito dos problemas graves que os escravizados enfrentavam. Fazendo parecer até mesmo que a escravidão da personagem não era algo tão sério e de tanto sofrimento como, por exemplo, o acidente que matou a mulher do barão e feriu o corpo dele.

Em algumas passagens a protagonista demonstra extrema pena da vida que o barão leva enquanto o barão não sentia nenhuma empatia pelo sofrimento da personagem. Até porque ter algumas cicatrizes é muito pior do que ver seu noivo ser assassinado na sua frente por ‘caçadores de homens’, ser arrancado de sua terra e ser escravizado. Como sempre, a dor do branco é mais importante do que a do negro.

É de dar nojo a forma como a protagonista foi escrita para ter simpatia e amor por aquele que a escraviza. Algumas passagens me embrulharam o estômago. E quando a personagem é liberta, ela não quer ir nem mesmo para outro lugar. Afinal aquele lugar onde foi marcada, escravizada e castigada é a sua verdadeira casa.

“— Está em casa agora, Bela.
— Sim, estou.”
(Isabela é o novo nome de batismo de Amali.)

Além de tudo, o livro ainda passa uma mensagem que o amor romântico cura tudo, que o amor transforma. Isso é algo extremamente preocupante! Muitas meninas e mulheres estão em relacionamentos abusivos, com a ideia de que se elas forem boas o suficiente, vão conseguir transformar uma fera num príncipe. E se não há essa transformação a culpa é delas. Não, o amor não cura tudo, o amor não transforma! Parem de reproduzir isso! Já passou da hora de parar de romantizar relacionamentos abusivos.

“— Vosmicê salvou-me de mim mesmo. Cuidou de minhas feridas, as mais dolorosas, as do coração.

— Não há nada que um pouco de amor não cure.”

Segundo a autora, o objetivo do livro é ‘exaltar a força do povo negro e dos princípios de liberdade e igualdade entre todos, sobretudo entre as mulheres’, mas não vejo isso em nenhum momento. Muito pelo contrário. Como mulher negra me senti extremamente ofendida com o conteúdo da obra.

A única coisa que posso pedir a autora é: respeite o seu lugar de fala. Você não tem que ter voz dentro do movimento negro, fale sobre o seu povo, o seu passado. Dê espaço para que negros contem a sua história na literatura, se isso for a sua vontade. Não venha falar sobre algo que você nunca terá ideia do que é, não fale de racismo se você nunca precisará passar por isso. A voz é do negro, deixe que ele fale.

Para finalizar, afirmo que o livro escrito por Jessica Macedo é racista, tem fetiches, reforça estereótipos, romantiza escravidão, relacionamento abusivo e estupro. A Escrava e a Fera é um livro que não deveria nem ter sido escrito, imagina publicado. A publicação dessa obra, sem dúvidas, é uma mancha na literatura nacional.


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