Negro ou preto?

Negro ou preto?

Por Sérgio Motta

2 de abril de 2020

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Negro e preto. Desde que não tente me inferiorizar, subjugar ou humilhar com essas palavras, pois as ressignificamos. Hoje elas significam orgulho e resistência.

Babu Santana voltou a ser o paizão na casa do Big Brother Brasil. Depois da saída de Felipe Prior, Babu tornou a conversar com as mulheres da casa e ontem destilou todo o conhecimento que tem dando uma palestra sobre racismo estrutural no Brasil.

Um trecho em específico viralizou e ascendeu uma discussão que já é comum e bem encaminhada dentro do movimento negro, ao alcance nacional: Babu falando sobre não gostar de usar a palavra “negro”, pois vem do latim nigrum [Babu diz vir do grego, por confusão], que significa preto, escuro, porém também era utilizada para remeter a algo sombrio, tenegroso, funesto, de mau agouro.

Babu e Thelma, então, dizem que consideram preto o correto.

Na acepção americana, faz total sentido. Nos Estados Unidos, a palavra “negro” realmente era utilizado no sentido mais ultrajante possível da palavra por brancos durante a escravidão.

Como a segregação racial nos EUA é bem mais visível, sobretudo, devido a como se deu a Guerra de Secessão, conveniou-se utilizar as palavras opostas, preto e branco, e a palavra “negro”, por sua carga histórica foi abominada. Hoje é ressignificada pelo movimento negro, para atribuições positivas, para se referir a sua irmandade, a alguém que você respeita e é negro como você. Já brancos a utilizarem, é uma injúria racial gravíssima pela carga histórica que o termo carrega vindo de pessoas brancas.

O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui

Essa lógica não é global. O Haiti tem a Constituição considerada mais igualitária do mundo. Nela, está escrito desde o final da Revolução Haitiana — que resultou no fim da escravidão e independência e tornou o Haiti a primeira república governada por pessoas de ascendência africana:

Todos os cidadãos, de ora em diante, serão conhecidos pela denominação genérica de negros.

O Haiti é a primeira república a humanizar os negros. Lá, negros são cidadãos, negros são pessoas, negros são o povo, todos são negros. A palavra foi completamente ressiginificada e tornou-se sinônimo de pessoa.

Já no Brasil, a miscigenação entre negros, indígenas e brancos é uma marca fenotípica do brasileiro (um fenômeno induzido, à partir do auto-ódio para evitar que negros se fortalecessem pós-escravidão, tal qual nos EUA, porém com uma população negra muito maior; papo para outro texto, muito maior e incisivo que esse).

O quadro “A Redenção de Cam” (1895), de Modesto Brocos, ilustra a tese do embranquecimento induzido à partir do ódio e auto-ódio ao negro no Brasil. Esse processo fez com que, inclusive, a palavra “preto” soasse como um xingamento (miscigenação, auto-ódio, ninguém queria ser preto no Brasil). Frases como “você não é negro, é moreno”, ou “pardo” ou “mulato” eram considerados elogios.

Inversamente proporcional aos EUA, nós, negros, ressignificamos aqui também a palavra “preto”. Já morenos, pardos e mulatos, carregam preconceitos embutidos que são ainda mais vis, por não parecer que são. Esse é o plano. São palavras que inferiorizam, vilanizam, tratam como “o outro”, “o errado”. Mas também é papo para outro texto.

Orgulho de ser preto, orgulho de ser negro

A palavra “negro” no Brasil ainda é importante. Para o IBGE, ela engloba o pretos e pardos de ascendência negra. Para a comunidade negra, ela permite união entre nós, em diferentes espectros de cor. Enquanto nos EUA, a palavra “negro” segrega, no Brasil, acolhe. Somos pretos e somos negros. Nos tornamos negros cada vez mais. Temos cada vez mais orgulho da nossa cor, da nossa raça. Estamos ressignificando essas palavras e associando-as à palavras positivas. O próprio Resistência Afroliterária é sobre literatura negra, cultura preta. Sobre mostrar a positividade dessas duas palavras.

De fato, como Babu falou, muitas atribuições negativas são associadas a palavra “negro”. Porém, a “preto” também. No final, não importa qual das duas palavras que você use, mas o tom e todos os signos e significados que você traz com ela, por duas razões: a linguagem é viva e muda a todo tempo e é nos signos e significados do racismo estrutural que está o problema.

Terminamos com duas citações de dois pensadores negros ou pretos — o que preferir, pois são atribuições positivas — que podem falar disso muito melhor do que nós. A primeira, de João Jorge , presidente do Olodum. Mestre em Direito público, advogado, produtor cultural:

No Brasil atual, o uso da palavra negro ou preto não é o central da luta contra o racismo. Com ambas as palavras os descendentes de africanos sofrem, morrem e são discriminados. Precisamos lutar contra o preconceito. Independente da palavra e sim olhando para quem sofre os efeitos diretos e indiretos do racismo no Brasil.

O segundo é de Abdias do Nascimento, autor de “O genocídio do negro brasileiro”:

Não se pode negar o fato concreto de que no Brasil a marca, a aparência do homem, é determinada pelo fator étnico e/ou racial. Um brasileiro é designado preto, negro, moreno, mulato, crioulo, pardo, mestiço, cabra, ou qualquer outro eufemismo; e o que todo mundo compreende imediatamente é que se trata de um homem de cor, um negro não importa a gradação da cor da sua pele.

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