É raro vermos a palavra “clássico” associada a obras da literatura negra. A própria origem da palavra não permite isso; aqueles com a caneta na mão, com o poder de assinalar o que são clássicos e o que não, majoritariamente brancos, permitem menos ainda.
O cenário vem mudando. E vem mudando por nós. Por cobrarmos, por disseminarmos os autores negros que foram embranquecidos, por lembrarmos de autores negros esquecidos pela academia, por nos reconhecer. Então, propomos para o #LeituraPreta de abril, lermos um clássico negro.
Como estamos em período de quarentena, não conseguiremos fazer um sorteio da nossa leitura. Então, optamos por uma edição gratuita que reúne “Úrsula e outras obras” de Maria Firmina dos Reis.
Não só por isso, é claro: a autora foi uma abolicionista negra que se tornou a primeira mulher a escrever um romance no Brasil, além de percursora da temática abolicionista na literatura (“Úrsula” foi escrito 30 anos antes da Lei Áurea). Este romance não ser uma leitura obrigatória nas escolas beira o escracho que a nossa sociedade racista representa. Lê-la é uma obrigação moral que vamos cumprir neste mês!
E, da mesma forma que leremos não apenas “Úrsula”, mas a obra de Maria Firmina dos Reis, vamos fazer uma lista de indicações de autores clássicos. Qualquer obra deles está valendo!
Livros para ler no #LeituraPreta de março: clássicos da literatura negra
Machado de Assis
O maior escritor brasileiro de todos os tempos despensa apresentações. “Dom Casmurro“, “Quincas Borba” e “Memórias póstumas de Brás Cubas” são obras ímpares da literatura mundial. Talvez o que você não saiba é que, entre romances, contos, crônicas, peças teatrais, poemas e sonetos, Machado tem uma obra de quase mil textos!
Carolina Maria de Jesus
Uma autora que raramente vemos citada como clássica, afinal Carolina não teve uma vida academicista, aristocrática ou artística. Muito pelo contrário. Mas talvez seja a autora mais clássica da literatura negra, pois Carolina é subversão, e literatura negra também. “Quarto de despejo: diário de uma favelada” é a sua obra mais conhecida, mas “Diário de Bitita“, “Casa de alvenaria” e “Meu sonho é escrever…” também precisam ser lidos.
Alexandre Dumas
Quer conhecer a literatura francesa? Passe por Alexandre Dumas. É o escritor francês mais lido do mundo, com obras como “Os três mosqueteiros“, “O conde de Monte Cristo” e “As aventuras de Robin Hood“. Alguns de seus escritos criticava o racismo e colonialismo, mas não foram bem aceitos pela aristocracia francesa. Por ser negro, Dumas só foi reconhecido oficialmente como um dos maiores escritores franceses em 2002, quando o então presidente Jacques Chirac decretou a exumação de seu corpo para que fosse sepultado no Panteão de Paris, mausoléu dedicado aos grandes filósofos e escritores da França, um ato de reparação histórica.
Cruz e Sousa
Foi um dos primeiros escritores brasileiros negros não-miscigenados de alto reconhecimento. Cruz e Sousa era filho de escravizados alforriados e uma das vozes ativas pelo abolicionismo. Transformou o racismo que sofria e sua vivência enquanto homem negro e pobre em poesia, transformando o sofrimento infernal que vivia no próprio inferno. Ganhou, então, o epíteto de Dante Negro, uma referência ao Inferno, primeiro livro da “A Divina Comédia“, de Dante Alighieri. Livros como “Negro” e “Broqueis: 271” são marcos da literatura brasileira.
Octavia E. Butler
Conhecida como “a grande dama da ficção científica”, Octavia E. Butler é uma das mais aclamadas autoras do gênero, e uma das precursoras do afrofuturismo na literatura. É autora de “Kindred“, “A parábola do semeador” e “Despertar“, publicados no Brasil pela editora Morro Branco. Ao longo de sua carreira, Butler recebeu os mais reconhecidos prêmios da ficção especulativa como Hugo, Nebula e Locus.
Conceição Evaristo
Se existe uma escritora no mundo que podemos dizer que é um clássico vivo, é Conceição Evaristo. A forma profunda e sensível como ela retrata vivências de mulheres negras é única na literatura. “Olhos d’água“, “Insubmissas lágrimas de mulheres“, “Ponciá Vicêncio“, “Becos da memória“, entre outros livros, são leituras que marcam para o resto da vida.
Frederick Douglass
Douglass foi escravizado, fugiu, lutou pelo abolicionismo, foi defensor dos direitos da mulher e tornou-se o primeiro negro candidato à vice-presidência dos EUA. Só tudo isso. Ele escreveu apenas um livro, mas é tudo que precisamos: “A narrativa da vida de Frederick Douglass, um escravo americano: escrita por ele mesmo“.
Lima Barreto
Negro, morador do subúrbio, desleixado e contraditório: era assim que o próprio Lima Barreto se definia. Como previsto por seus epítetos, o reconhecimento não veio a sua época. Apesar da obra-prime “O triste fim de Policarpo Quaresma“, Lima Barreto só foi considerado um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos após a publicação póstuma da maioria de seus escritos, como “Clara dos Anjos” e “Os Bruzundangas“.
Mário de Andrade
Pois é, Mário de Andrade é preto. Oswaldo de Camargo mostra o drama da auto-aceitação e do preconceito que Mário passava em “Negro drama: ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade“. Embora tivesse traços negroides, sua pele era mais clara, e Mário sempre teve dificuldade em aceitar-se enquanto negro. “Macunaíma” e poemas como “Eu sou trezentos” e “Reconhecimento do nêmesis”, presente em “Poesias completas“, e tratam sobre questões raciais do autor. Em 1938, Mário fez o discurso inaugural da celebração de 50 anos da Lei Áurea e falou sobre o orgulho da pele negra, frente ao embranquecimento induzido no Brasil. Segue um trecho:
Se qualquer de nós brasileiros se zanga com alguém de cor duvidosa e quer insultá-lo, é freqüente chamar-lhe: Negro! Eu mesmo já tive que suportar esse possível insulto em minhas lutas artísticas, mas parece que ele nem foi muito lá convincente nem conseguiu me destruir, pois que vou passando bem, muito obrigado. Mas é certo que se insultamos alguém chamando-lhe” negro”, também nos instantes de grande carícia, acarinhamos a pessoa amada chamando-lhe “meu negro”, “meu nego”. […] No Brasil, não existe realmente uma linha de cor. Por felicidade, entre nós, negro que se ilustre pode galgar qualquer posição. Machado de Assis é o nosso principalíssimo e indiscutido clássico de língua portuguesa e é preciso não esquecer que já tivemos Nilo Peçanha na Presidência da República. Mas semelhante verdade não oculta a verdade maior de que o negro entre nós sofre daquela antinomia branco-europeia que lembrei de início, e que herdamos por via ibérica.
Solomon Northup
Você pode não reconhecer esse nome, mas talvez sua história: Northup era um fazendeiro e violinista livre nos EUA, que foi sequestrado por mercadores de escravos em 1841. Durante doze anos, foi humilhado, torturado e maltratado por seus senhores sem poder entrar em contato com sua família. Quando conseguiu sua alforria, reencontrou sua família e escreveu um livro de memórias, que foi adaptado para filme e venceu três Oscar em 2014. Qual o nome do livro? Quem respondeu “Doze anos de escravidão” está correto. Este é um dos poucos registros sobre a escravidão de quem a viveu e, certamente, mais real e tenebroso do que os assinados por historiadores brancos.
Alice Walker
A primeira mulher negra a ganhar um prêmio Pulitzer de literatura com “A cor púrpura“. Clássico o suficiente para mim. Alice Walker é romancista, contista, poetisa, ensaísta e tem uma trajetória ligada também ao ativismo em busca de direitos e respeito a mulheres negras, inclusive, foi quem cunhou o termo “mulherismo” no livro “In Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose“, sem tradução para português.
Toni Morrison
O que pode ser mais clássico do que ser a primeira mulher negra a ganhar um Pulitzer de literatura? Ser a primeira mulher negra a ganhar um Nobel de Literatura (além da segunda a ganhar um Pulitzer!). Os livros de Toni Morrison dizem mais do que o que podemos dizer aqui. Leia “Amada“, “O olho mais azul“, “A fonte da autoestima“, “Deus ajude essa criança” e as outras obras da autora.
Harriet Ann Jacobs
Mais um relato necessário de uma pessoa escravizada que conseguiu sua liberdade e, então, seguiu lutando por uma reforma abolicionista. Desta vez, estamos falando de uma mulher negra. Harriet Ann Jacobs é mais uma sobrevivente que escreveu sua autobiografia, “Incidentes na vida de uma menina escrava“.
(Arte da capa: Revista CULT)
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